de Fernando Martins
Editado por Fernando Martins | Sábado, 19 Setembro , 2009, 11:23



OUVIR O QUÊ?


No meio da vertigem das tempestades de palavras em que vivemos, que nos atordoam e paralisam, tal-vez se torne urgente parar. Para ouvir.

Ouvir o quê? Ouvir o silêncio. E só depois de ouvir o silêncio será possível falar, falar com sentido e palavras novas, seminais, iluminadas e iluminantes, criadoras. De verdade. Onde se acendem as palavras novas, seminais, iluminadas e iluminantes, criadoras, e a Poesia, senão no silêncio, talvez melhor, na Palavra originária que fala no silêncio?

Ouvir o quê? Ouvir a voz da consciência, que sussurra ou grita no silêncio. Quem a ouve?

Ouvir o quê? Ouvir música, a grande música, aquela que diz o indizível e nos transporta lá, lá ao donde somos e para onde verdadeiramente queremos ir: a nossa morada.

Ouvir o quê? Ouvir os gemidos dos pobres, os gritos dos explorados, dos abandonados, dos que não podem falar, das vítimas das injustiças.

Ouvir o quê? Talvez Deus - um dia ouvi Jacques Lacan dizer que os teólogos não acreditam em Deus, porque falam demasiado dele -, o Deus que, no meio do barulho, só está presente pela ausência.

Ouvir o quê? Ouvir a sabedoria. Sócrates, o mártir da Filosofia, que só sabia que não sabia, consagrou a vida a confrontar a retórica sofística com a arrogância da ignorância e a urgência da busca da verdade. Falava, depois de ouvir o seu daímon, a voz do deus e da consciência.

Ninguém sabe se Deus existe ou não. Como escreve o filósofo André Comte-Sponville, tanto aquele que diz: "Eu sei que Deus não existe" como aquele que diz: "Eu sei que Deus existe" é "um imbecil que toma a fé por um saber". Deus não é "objecto" de saber, mas de fé. E há razões para acreditar e razões para não acreditar.

Comte-Sponville não crê, apresentando argumentos, mas compreendendo também os argumentos de quem crê. Numa obra sua recente, L'Esprit de l'athéisme, mostra razões para não crer, mas sublinhando a urgência de pensar, se se não quiser cair no perigo iminente de fanatismos e do niilismo, e, consequentemente, na barbárie, "uma espiritualidade sem Deus".

Constituinte dessa espiritualidade, no quadro de um "ateísmo místico", é precisamente o silêncio. "Silêncio do mar. Silêncio do vento. Silêncio do sábio, mesmo quando fala. Basta calar-se, ou, melhor, fazer silêncio em si (calar-se é fácil, fazer silêncio é outra coisa), para que só haja a verdade, que todo o discurso supõe, verdade que os contém a todos e que nenhum contém. Verdade do silêncio: silêncio da verdade."

Encontrei Raul Solnado apenas uma vez. Num casamento. Surpreendeu-me a imagem que me ficou: a de um homem reflexivo. Não professava nenhuma religião. Por isso, não teve funeral religioso. Mas deixou um pequeno escrito, com uma experiência, no silêncio, na Expo, em Lisboa, em 2007.

"Numa das vezes que fui à Expo, em Lisboa, descobri, estranhamente, uma pequena sala completamente despojada, apenas com meia dúzia de bancos corridos. Nada mais tinha. Não existia ali qualquer sinal religioso e por essa razão pensei que aquele espaço se tratava de um templo grandioso. Quase como um espanto, senti uma sensação que nunca sentira antes e, de repente, uma vontade de rezar não sei a quem ou a quê. Sentei-me num daqueles bancos, fechei os olhos, apertei as mãos, entrelacei os dedos e comecei a sentir uma emoção rara, um silêncio absoluto. Tudo o que pensava só poderia ser trazido por um Deus que ali deveria viver e que me envolvia no meu corpo amolecido. O meu pensamento aquietou-se naquele pasmo deslumbrante, naquela serenidade, naquela paz. Quando os meus olhos se abriram, aquele Deus tinha desaparecido em qualquer canto que só Ele conhece, um canto que nunca ninguém conheceu e quando saí daquela porta, corri para a beira do rio para dar um grito de gratidão à minha alma, e sorri para o Universo. Aquela vírgula de tempo foi o mais belo minuto de silêncio que iluminou a minha vida e fez com que eu me reencontrasse. Resta-me a esperança de que, num tempo que seja breve, me volte a acontecer. Que esse meu Deus assim queira."

Anselmo Borges

In DN
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