de Fernando Martins
Editado por Fernando Martins | Sábado, 19 Janeiro , 2008, 11:34

Quando se reflecte sobre a mentira, é difícil não vir à mente o famoso paradoxo de Epiménides. Diz um cretense: "Todos os cretenses são mentirosos." Sendo cretense, também ele mente. Então, a sua afirmação é verdadeira ou falsa?
Pessoalmente, também lembro uma estória que um jesuíta me contou. Ah! o céu vai ser a coisa mais fabulosa que possamos imaginar. Mas, nos primeiros dois-três dias, no fim do mundo, antes da entrada no céu, quando Deus começar a entregar os filhos aos verdadeiros pais e o dinheiro aos verdadeiros donos, portanto, quando se repuser a verdade, que confusão!...
Afinal, independentemente do paradoxo do cretense, todos mentimos. Mentimos às crianças e ensinamo-las a mentir, com este resultado caricato: "O pai disse para dizer que não está em casa." O miúdo acha que a tia é feia e diz-lho na cara, mas é claro que vai ser repreendido.
Se uma mulher gorda nos pede a opinião - "Estou gorda, não estou?" -, vamos aliviá-la: "Nem pense nisso!"
Imaginemos que uma bela manhã todos se levantavam com a decisão firme de, fossem quais fossem as circunstâncias, dizerem na cara dos colegas, dos amigos, dos vizinhos, dos superiores hierárquicos, dos amantes, dos companheiros de viagem em comboios e autocarros, dos imbecis, dos governantes, fosse de quem fosse, o que verdadeiramente pensam deles. O que seria a vida social sem algumas mentiras ou, pelo menos, sem a omissão da verdade nua e crua?
Os políticos! Desses diz-se que têm como condição de sobrevivência mentir.
Depois, há sempre o que não é conveniente...
E é assim que a verdade raramente se diz, pelo menos toda. Porque realmente não é conveniente: nem na política, nem nos media, nem no sexo, nem aos amigos - Pascal escreveu que, se os amigos soubessem o que os amigos dizem deles na sua ausência, talvez não restassem no mundo mais do que dois ou três. O que pensam e dizem realmente de nós os nossos amigos? Quereríamos saber?
Todos mentimos. Há, porém, mentiras e mentiras. Tomás de Aquino distinguiu entre mendacium - mentira - e falsiloquium - não dizer a verdade a alguém que não precisa de sabê-la ou não tem o direito de sabê-la. No limite, pode acontecer que mentir seja uma obrigação moral. Se um assassino procura um inocente para matá-lo, deve-se mentir quanto à sua localização. O detentor da chave do segredo para desencadear a guerra nuclear deverá mentir ao terrorista que a exige...
A mentira não se refere imediatamente à verdade, mas à veracidade: dizer a alguém o contrário do que se julga ser verdade, com a intenção de enganar. Aprofundando mais, deve-se acrescentar: não dizer a verdade a alguém que tem o direito de sabê-la. M. Onfray escreveu que nunca se deveria mentir, fossem quais fossem as consequências, como exige Kant; mas, se Kant tem razão em princípio, esse princípio é na realidade não vivível, impraticável; por isso, aceita a definição de mentira como "o facto de não dar a verdade, sem dúvida, mas só a quem é devida". Uns têm direito a ela, outros não: por exemplo, um nazi que procurava um judeu para matá-lo não tinha o direito à verdade. Deve-se distinguir "a mentira prejudicial, impura, a que procura um engano destinado a submeter o outro, a limitá-lo, a evitá-lo, a desprezá-lo, e a mentira para ajudar, limpa, chamada por alguns mentira piedosa, a que cometemos, por exemplo, com a finalidade de poupar sofrimento e dor a uma pessoa querida".
Em Portugal, quando se olha para as promessas incumpridas dos políticos, jogos obscuros na banca, subterfúgios à procura da localização de aeroportos, uma política de saúde que fecha maternidades e urgências e descura pobres e velhos, o caos na justiça, um leque salarial gritantemente indecoroso, previsões inverdadeiras da inflação e outras infindas manobras com corrupção activa e passiva à mistura, tem-se a sensação de que se avança em terreno minado pela mentira, com uma democracia perplexa, triste e quase impotente. Quando os portugueses têm direito à verdade.

Anselmo Borges

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