A questão de Jesus é a da relação entre o Jesus da História e o Cristo da fé. Como se chegou à confissão de que Jesus é o Cristo, que quer dizer o Messias, e o Filho de Deus?
É a fé que estabelece esse laço, mas baseada na História. Sem o Jesus da História, o Cristo não passaria de um mito, mas, sem a confissão de fé de que o Jesus da História é o Cristo, Jesus não passaria de um mestre espiritual e mais uma vítima no calvário do mundo. A vida e a morte de Jesus abrem para a sua interpretação e reconhecimento como o Cristo; o Cristo ilumina a vida e a morte de Jesus. A chave acaba por ser a experiência da ressurreição - o Crucificado é o Vivente em Deus para sempre.
J. Ratzinger-Bento XVI, no seu "Jesus de Nazaré", resultado de "uma longa caminhada interior" e que não é "um acto do Magistério", pressupõe esta tensão dinâmica e entrecruzada da História e da fé, mesmo se, como disse o cardeal Carlo Martini, especialista em estudos bíblicos, "ele não é exegeta, mas teólogo e, se bem que se mova agilmente por entre a literatura exegética do seu tempo, não fez estudos de primeira mão, por exemplo, sobre o texto crítico do Novo Testamento".
Num horizonte mais paulino e agostiniano, acentua o Cristo eterno da fé, mas sublinhando que esse é o Jesus da história, "o dos Evangelhos". O cristianismo tem o seu núcleo na cristologia e, portanto, na confissão de fé da mais íntima unidade de Jesus com o Pai. Em Jesus, Deus vem ao nosso encontro. Ele é Deus presente no meio dos homens.
Quem ler atentamente depara-se com um belo testemunho sobre Jesus e a fé tradicional da Igreja. O seu pendor conservador é notório, por exemplo, quando, ao explicar a oração do Pai Nosso, afirma que, apesar de todas as imagens sobre o amor materno de Deus, "Mãe" não é um título com o qual possamos dirigir- -nos a Ele.
Embora a dimensão sociopolítica da actividade de Jesus fique na penumbra, Ratzinger- -Bento XVI não deixa de reconhecer a importância da presença das mulheres na comunidade mais próxima de Jesus e que é inegável "a opção preferencial pelos pobres". Apesar de declarar que o lugar do Reino de Deus é "a interioridade do Homem", alerta para os horrores do totalitarismo e da injustiça: "Face ao abuso do poder económico, face às crueldades de um capitalismo que degrada o Homem a simples mercadoria", compreendemos a advertência de Jesus frente ao deus Dinheiro, que "mantém grande parte do mundo numa opressão cruel".
Comentando a parábola do bom Samaritano, sublinha a sua actualidade, e escreve sobre a África: quando traduzimos a parábola para as dimensões da comunidade mundial, "vemos que nos dizem respeito os povos de África, roubados e espoliados. Vemos então como são realmente nossos 'próximos', que também o nosso estilo de vida e a nossa história os espoliaram e espoliam. E isto não se passa apenas com a África."
Não vemos também à nossa volta "o Homem espoliado e destroçado"? "As vítimas da droga, do tráfico de seres humanos, do turismo sexual, seres humanos intimamente destruídos, que, no meio da riqueza material, estão vazios."
O fio condutor da obra de Ratzinger-Bento XVI é que o sinal de Deus para os homens é o próprio Jesus. Agora, sabemos que Deus é amor. É preciso "converter-se do Deus--Lei ao Deus maior, o Deus do amor". Para se não trair o essencial da mensagem, não se pode misturar a fé e a política. O preço da fusão da fé e do poder político é "a fé pôr-se ao serviço do poder e ter de se dobrar aos seus critérios."