Há manifestações frequentes, pessoais e colectivas, que são de leitura difícil, se não mesmo impossível, quando faltam a quem julga, critérios adequados à sua total compreensão. São as assim as manifestações religiosas de fé, mormente quando envolvem multidões de crentes, por vezes gente humilde e simples, mas com convicções profundas e consequentes e coragem para as afirmar.
Esta leitura, já de si complexa, aparece muitas vezes deformada pelos críticos e pela comunicação social que não vai além das aparências e se prende em aspectos limitados. Assim é com os peregrinos de Fátima, cumpridores ou não de promessas, chegados ao Santuário a pé ou de outro modo, vindos de norte e sul e dos quatro cantos do mundo.
A expressão religiosa da fé traduz-se sempre de um modo cultural e, deste modo, é uma representação limitada, provisória e relativizada. Dela emergem, porém, sentimentos respeitáveis, capazes de convocar e unir pessoas, derrubar muros interiores, abrir horizontes novos, quebrar rotinas e acordar esperanças.
Não é fácil a coragem de se afirmar hoje, publicamente, como cristão numa sociedade cada vez mais secularizada, religiosamente indiferente, que foi cortando as referências vitais com o transcendente. Pese, embora, o incómodo de alguns, a verdade é que não falta gente a afirmar a dimensão religiosa e evangélica da sua vida, e a dar razão da sua esperança com palavras convincentes, certas e sábias. E fá-lo de modo livre.
Com o propósito de ver para além do que os olhos vêem, quando tal se proporciona, gosto de caminhar por entre estes cristãos corajosos, quedo-me a admirar e a perscrutar o seu mundo interior e a tentar adivinhar o que os leva a exprimir assim a sua fé.
As peregrinações são ocasião privilegiada para tal propósito. Foi assim, há dias, com perto de vinte mil peregrinos emigrantes que trabalham em diversos países da Europa e se deslocaram a Mont-Roland, em França. De igual modo, dois dias depois, em Fátima, deixando-me envolver, silenciosamente, e contemplando a multidão que desafia, com um rosto sereno e confiante, o rigor do tempo, o cansaço da caminhada, o incómodo das cerimónias longas, a incompreensão dos críticos fáceis
As expressões populares de fé não são apenas de pessoas simples e iletradas. Também as manifestam gente culta, que guarda a fé bebida com o leite da sua mãe ou fez alguma experiência de Deus, em momento tão decisivo da vida, que não mais pode esquecer.
Dizem alguns, mesmo da Igreja, que muita gente generosa numa peregrinação, não exprime total coerência de fé na sua terra e no seu dia a dia. A coerência da fé adquire-se ao longo da vida, ante os desafios que a mesma vai pondo. A força unificadora do que se acredita e do que se vive não é obra de um momento, mas sim de uma decisão interior que se vai tornando vida no meio de incómodos e obstáculos. Neste esforço de procura de coerência e de unidade na vida, misturado de êxitos e de fracassos, vai a força que não deixa desistir, a gratidão pelo que já se conseguiu, a aceitação das contrariedades inevitáveis, o gesto discreto de solidariedade, as expressões de amor, os propósitos de bem fazer, a coragem para permanecer na comunhão eclesial.
O maior desafio que hoje se põe aos cristãos e às comunidades é o da formação que enraíza e esclarece a fé e o do testemunho que dá sentido e abertura missionária às suas vidas. É esta uma responsabilidade permanente de quem serve. Servindo, se encontra maneira de interessar quem nisso precisa de ser servido e de que vai tendo consciência.
No tempo do peregrinar na vida, Deus não é o juiz que contabiliza os resultados obtidos. É o Pai atento que incita a ir mais longe, dando a mão aos caídos, o colo aos cansados, a palavra estimulante aos que caminham sempre, levando uma cruz pesada. A gente, iletrada ou culta, com fé evangélica, desperta adormecidos e desatentos e denuncia teóricos, tardios em oferecer o seu ombro para ajudar os inúmeros feridos da vida.
António Marcelino