1. Foi na América que há dias um acidente especial foi notícia de destaque. Tratava-se de um senhor idoso que ao atravessar uma estrada foi atropelado. Ficou caído no chão. Veio o carro seguinte e passou por cima. As pessoas, quer dos carros quer dos passeios da berma abrandavam um pouco, mas logo seguiam a sua vida. A pessoa atropelada logo viria a falecer. Mas o mais gritante do acontecimento foi a passividade dos transeuntes até alguém “pôr a mão” ao acidentado. A notícia foi badalada, e abordada mesmo a questão de fundo do individualismo e da indiferença dos caminhantes perante um “irmão humano” estendido na estrada. Foram as imagens da câmara de filmar da estrada que gravaram esse indiferentismo e o salve-se quem puder da vida tida de moderna das designadas grandes cidades do mundo. Mesmo sem as generalizações sempre injustas, dá muito que pensar sobre o modelo de civilização em andamento pelas estradas da vida ocidental.
2. Foi já no mês passado que um grupo musical francês, da chamada arte de música electrónica, provocou um aceso debate sobre a polémica de um vídeo colocado na internet, no Youtube. A arte do vídeo da música tinha como título «stress». As imagens, acompanhadas de enérgica música electrónica, mostravam um grupo de jovens dos subúrbios de Paris a saírem do seu bairro e, por onde iam passado, a provocarem graves distúrbios públicos: «Roubo, assédio, destruição de um café, confrontos com a polícia, carjacking, terminando com a queima de um veículo», foram as fortes imagens seleccionadas para passar a mensagem musical. Polémica instalada, os defensores deste estilo de liberdade respondem com arte cinematográfica, dizendo que o vídeo é uma magnífica obra de arte semelhante a filmes como «O Ódio» e «Manual de instruções para crimes banais». Títulos evocadores de arte mortífera.
3. Deste caso francês, que quase regista os motins dos bairros pobres incitando a violência, o grupo musical e a respectiva editora dizem que se trata de arte e que é inofensivo, pretendendo caracterizar a cobertura que os média fazem quando ocorrem os motins dos subúrbios de Paris. Dá que pensar, e para mais novamente no país da razão que parece continuar a extravasar a própria ordem da racionalidade. A montante e a jusante, quer como facto polémico quer na sua resposta, sente-se que um certo património de valores comuns de dignidade da pessoa humana e da não-violência se vão expirando. Claro que há que ter cuidado com a referência a «valores comuns» em tempos da proclamação exaltada dos «valores individuais». Não existam ilusões, sem sobreposições, precisamos mesmo de valores comuns na base da dignidade da Pessoa, esta na sua vocação ao sentido de pertença e de comunidade. Quando não, este género de «acidentes» tem grave tendência para a multiplicação. A sensibilidade e o bom senso, enxertados na sólida formação humana e cívica, serão os valores comuns que garantem a dignificação pessoal e o sentido da história comum. Mas que lugar estes ocupam na formação contemporânea?