Nas concepções tradicionais, o divino acabava por identificar-se com o universo, necessário e eterno. "Tudo está cheio de deuses", afirmou Tales. O cosmos era um deus perceptível sensorialmente, a totalidade do divino e do humano. Deus era mais um atributo do cosmos do que um sujeito. Confundia-se com a profundidade numinosa da realidade.
Neste quadro, a afirmação do Deus pessoal transcendente e criador constituiu uma revolução na História da consciência religiosa e é o legado bíblico essencial à Humanidade. Num processo que culmina com os últimos profetas, no tempo do exílio na Babilónia (séculos VI e V a.C.), Israel, erguendo--se acima da hierogamia e do politeísmo, operou, com a fé monoteísta, "a sua grande revolução religiosa", como escreveu o teólogo X. Pikaza.
Deus é transcendente ao mundo e, criando-o em liberdade, retira-lhe o carácter sacral. O mundo, agora, é simplesmente mundo, distinto de Deus. As realidades mundanas têm verdade em si mesmas, as suas próprias leis e autonomia. Esta foi a condição de possibilidade da secularização. Deus não se identifica com nada do mundo.
Deus é, pois, infinitamente transcendente, independente e distinto e distante do mundo. Mas, paradoxalmente, por isso mesmo, é sumamente presente ao mundo enquanto criador e, porque o mundo é mundo e o Homem é Homem, pode revelar-se e o Homem pode aceitar pela fé ou rejeitar a sua manifestação. Na sua diferença, a proximidade de Deus com o Homem é de diálogo, ficando aberta a possibilidade do próprio ateísmo, que não existia numa concepção sacralizada do mundo. O mistério cristão da encarnação também pressupõe a diferença de Deus, do Homem e do mundo.
Não admira, pois, que, nas suas origens, o cristianismo aparecesse como uma religião surpreendentemente "secular". Nas comunidades cristãs, havia ministérios e carismas, mas não uma casta sacerdotal. A liturgia consistia essencialmente numa refeição fraterna nas casas dos cristãos. Os presbíteros e quem presidia vestiam normalmente, mesmo na celebração eucarística. Usava-se a língua habitual, não havia templos. Foi tal o choque sobretudo por causa da inexistência de sacrifícios que os cristãos foram acusados de ateísmo.
Como mostrou L. González-Carvajal, com o reconhecimento do cristianismo como religião oficial do Império, tudo se foi modificando, passando inclusivamente o cristianismo de religião perseguida a religião perseguidora. Apareceram os templos e a mesa comum da refeição familiar deu lugar ao altar. Se, no Novo Testamento, todos os cristãos eram considerados "santos", impôs-se a distinção entre o clero (a parte "sagrada") e os leigos (a parte "profana"). Ergueram-se barreiras entre o "presbitério" e o resto do templo: o lugar próprio do sacrifício eucarístico ficava reservado aos sacerdotes, que foram retirados da vida normal e sujeitos à lei do celibato. Só o clero podia distribuir a comunhão, pois as mãos "impuras" dos fiéis não deviam tocar os santos mistérios.
Depois, monarcas reivindicaram o direito divino dos reis e papas formularam a teoria das duas espadas. Durou séculos a luta entre a Igreja e a modernidade e ao clericalismo contrapôs-se o anticlericalismo.
De qualquer modo, mesmo se teve de impor-se à Igreja oficial, havia na Bíblia um fermento de laicidade. Foi assim possível o Estado moderno laico, no quadro de uma racionalidade da organização da vida colectiva, etsi Deus non daretur (como se Deus não existisse): não compete ao Estado decidir se Deus existe ou não, mas tratar dos negócios da existência em comum no mundo e defender a liberdade religiosa de todos.
Claro que, de ambas as partes, haverá sempre a tentação do poder. E quem não sabe que, na sua dinâmica, o poder tende a ser total? Pelo seu lado, a Igreja só deveria reclamar liberdade. Sem privilégios. A título de exemplo: que interesse pode ela ter no casamento católico com efeitos civis? Não seria preferível, também aqui, separar águas? De qualquer modo, como escreveu o teólogo E. Schillebeeckx, a Igreja será cada vez mais uma "Igreja de voluntários".
Anselmo Borges