de Fernando Martins
Editado por Fernando Martins | Terça-feira, 12 Fevereiro , 2008, 19:15

"Se eu fosse pintor, passava a minha vida a pintar o pôr do Sol à beira-mar. Fazia cem telas, todas variadas, com tintas novas e imprevistas. É um espectáculo extraordinário.
Há-os em farfalhos, com largas pinceladas verdes. Há-os trágicos, quando as nuvens tomam todo o horizonte com um ar de ameaça, e outros doirados e verdes, com o crescente fino da Lua no alto e do lado oposto a montanha enegrecida e compacta. Tardes violetas, neste ar tão carregado de salitre que torna a boca pegajosa e amarga, e o mar violeta e doirado a molhar a areia e os alicerces dos velhos fortes abandonados ...
Um poente desgrenhado, com nuvens negras lá no fundo, e uma luz sinistra. Ventania. Estratos monstruosos correm do norte. Sobre o mar fica um laivo esquecido que bóia nas águas – e não quer morrer... "

Raul Brandão, in " Os Pescadores"

Foto de Ângelo Ribau


Editado por Fernando Martins | Terça-feira, 12 Fevereiro , 2008, 15:00
Gafanha antiga: Igreja matriz, inaugurada em 1912


Recordo hoje o espírito de entreajuda que existia entre os gafanhões dos princípios do século passado e, talvez, das gerações anteriores, espírito esse que ainda vivi na minha meninice. Cenas que mostravam o espírito da vizinhança bastante acentuado, que se confirmava na cedência dos fósforos que se tinham esgotado, do ovo que faltava, do sal que tinha acabado, das couves para as refeições de todos os dias, que as do próprio quintal ainda não estavam à moda de apanhar, e do azeite que deixara de escorrer da garrafa.
As pessoas gostavam de trabalhar em conjunto. As tarefas agrícolas eram participadas pelos familiares e vizinhos, na certeza de que no dia seguinte estariam nos terrenos de outros ou nos seus, quando chegasse a sua vez. Trabalhavam para “ganhar tempo”, como se dizia e eu tanto observei.
Nas desmantadelas do milho, ao serão para juntar mais vizinhos, havia o bom gosto de brincar. Num desses serões, uns trolhas, que trabalhavam na Gafanha e que tinham vindo dos lados da Murtosa, apareceram com uns lençóis pela cabeça e umas máscaras improvisadas para esconderem as suas identidades. Foi uma noite bastante divertida, cada um procurando adivinhar quem seriam os mascarados. Só muito tarde, noite adiantada, se soube quem eles eram. Nunca percebi a razão destas brincadeiras que se mantêm na minha memória.
Vinham, depois, as malhadas, com o recurso ao malho. Gente possante e treinada, para marcar a cadência, à força de tanto bater lá se conseguiam separar os grãos de milho do caroço. O mesmo acontecia com a cevada, centeio ou aveia, os cereais mais cultivados nas Gafanhas.
Contudo, muito frequentemente os malhos e a força humana eram substituídos pela caminhada cadenciada das vacas dos proprietários e vizinhos sobre os cereais colocados com jeito na eira.
Estou a ver os mais jovens a imaginarem o que aconteceria quando as vacas precisassem de fazer as suas necessidades! Pois foi fácil, ou não andassem os nossos avós habituados a contornar as dificuldades. Inventaram uma retrete ambulante muito prática e higiénica: ao lado da roda formada pelas vacas em marcha, na eira, postava-se, atento, um garoto, com um bacio na mão, à espera que um qualquer animal resolvesse esvaziar a tripa ou a bexiga!
Porém, as manifestações comunitárias não se circunscreveram, nos primórdios da Gafanha, aos trabalhos agrícolas, mas estenderam-se, também, a outras actividades mais ou menos importantes.
Recordo ainda hoje a azáfama no fabrico dos adobos nos areais esbranquiçados, junto à mata. A cal viva era transportada em carros de bois desde os locais de origem, das bandas da Bairrada, ao que se dizia, até à Gafanha. Uma vez nos areais, era queimada pela simples junção de água dum poço que ali mesmo era aberto. Juntavam-se, depois, as famílias dos nubentes e os amigos e vizinhos, com os mais entendidos no comando das operações, para amassarem a cal com a areia e para moldarem os adobos em formas previamente feitas de tábuas.
Os mais experientes manejavam a colher da cal, ajeitando e apertando a massa sobre a forma de madeira, que era retirada, pouco depois, para se continuar a operação tantas vezes quantos os adobos necessários. E ali ficavam eles a secar à torreira batida pelos ventos que só os pinheiros enfrentavam corajosamente.
Vinham, a seguir, as “ajuntadelas”. O mesmo rancho lá ia empilhar os adobos para que adquirissem a consistência que só o tempo podia dar.
Nas vésperas da construção da casa, procedia-se à “acartadela” em carros de bois ou de vacas postos à disposição dos interessados pelos que os possuíam. Sabiam estes que tais favores eram sempre compensados, em maré semelhante, pelos que eram agora beneficiados. Depois, essa mesma gente ajudava, na hora própria, a “levantar a casa”, tarefa orientada pelo mestre ou familiar mais conhecedor.
Logo que a casa ficasse coberta, e quantas vezes sem o mínimo conforto, ali se recolhia o jovem casal para iniciar vida nova sob a bênção de Deus e dos pais.
Os acabamentos seguiriam quando houvesse dinheiro, porque o hábito de “ficar a dever” foi coisa que surgiu apenas nos nossos dias.

Fernando Martins

Editado por Fernando Martins | Terça-feira, 12 Fevereiro , 2008, 14:45

Para os românticos, no dia 23 de Fevereiro

Mais de três décadas depois, Charles Aznavour volta a Portugal, para cantar no Pavilhão Atlântico. Será no dia 23 de Fevereiro que este Senhor da Canção Romântica mostrará, aos 83 anos de idade, como se canta bem. Aqui fica um cheirinho do que ele cantará.

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Editado por Fernando Martins | Terça-feira, 12 Fevereiro , 2008, 14:34
Despesa versus Investimento

1. Estas duas palavras, despesa e investimento, conjugam muita da tensão entre duas concepções distintas, em que o meio será a virtude. Considerar como “despesa” áreas fundamentais da sociedade que poderão ser alavancas do futuro é fica-se pelo meio do caminho. Normalmente, as (continuadas) épocas do aperto económico são muito mais amigas da palavra “despesa”, dessa forma fechando as portas daquilo que pode ser raiz de novas soluções. Em conformidade, pouca margem é dada a uma concepção de “investimento”, considerando-se, precipitadamente, o “rigor” inimigo das apostas essenciais no futuro.
2. Não é fácil, a não ser na teoria, a conjugação funcional destes factores eixo do desenvolvimento dos povos. Exigirá o saber-se caminhar numa fronteira de difícil discernimento, mas em que a envolvência participativa de todos os agentes dessa determinada área muito poderão colaborar no encontrar das melhores soluções no terreno. Não é nada de novo o dizer-se que todas as despesas nas áreas fulcrais da saúde, educação, acção social e justiça devem ser mudadas de nome, sendo designadas como investimentos para uma sociedade mais humana e justa para todos. Umas a montante outras a jusante.
3. Não há comunidade social que se segure muito tempo centrada só no por as contas em dia, sem olhar a meios para atingir esses fins. Esta óptica numérica sempre cegou lendo tudo como despesa e desumanizando as pessoas e as relações, deitando a perder as motivações em valores e ideais comuns, algo que caracteriza os humanos nas sociedades livres democráticas. E se os grandes investimentos são projectados em grandes obras ou acontecimentos continuam-se a adiar, para além da “cosmética”, os grandes investimentos no maior tesouro das sociedades, as pessoas. Vão sendo muitas as afirmações de um mau estar social, de uma multidão de juventude sem “lugar”, a par de continuadas denúncias de corrupções numa justiça que tem o seu ritmo…
4. O terreno está difícil. Frutifica o que se deveria apagar e não floresce o que seria imperioso reinar. Como não dá frutos numéricos imediatos, (nada de novo) continua a não haver lugar de explícito insubstituível (transversal e específico) para uma formação humana sensibilizadora para os valores fundamentais da comunidade (nacional, europeia e global). Queremos colher os frutos sem termos o generoso cuidado de investir na sementeira. Eis um dos dramas das sociedades que crescem nas “coisas” mas vão ficando pobres de horizontes de ser-sentir-pensar-esperar. Felizmente, parece que em termos de educação artística e formação musical algo estará em processo de realização. Assim seja, de forma envolvente com todos, aberta, transversal…(?). Aprender música é saber matemática!

Alexandre Cruz

Editado por Fernando Martins | Terça-feira, 12 Fevereiro , 2008, 12:37

A Quaresma coincide com o irromper da primavera, e a coincidência não é apenas de calendário, mas de fundo. Há um nítido apelo primaveril, o mesmo sopro tenro, um igual perfume disseminado nesta proposta quaresmal, que pode até (injustamente) passar por sisuda ou anódina, quando é o oposto disso.
A Quaresma é um tempo simbólico. Constitui, em vista da Páscoa, um sobressalto vital. A Quaresma vem exorcizar o fatalismo, reagir ao ditado pragmático do "deixa andar". Tudo isso em nome de uma grande esperança: "Pode um homem sendo velho nascer de novo?", perguntava Nicodemos a Jesus. E não ficou sem resposta.
Neste pôr-a-vida-em-processo-de-florescimento somos ajudados por três expressões do património espiritual cristão:
1. A oração. A oração é uma brecha que nasce da escuta. Pelo provisório faz passar o Eterno. Ao puramente histórico empresta uma vocação transcendente. Permite que o homem olhe não apenas para Deus, mas seja capaz de olhar-se a ele próprio com os olhos de Deus.
2. O jejum. Vivemos triturados na digestão que o mundo faz de nós. Trazemos o Ser hipotecado ao Ter. Corremos de um lado para outro, reféns e instrumentos, mais do que autónomos e criativos. A privação, quando corresponde a um acto espiritual, amplia o campo da liberdade. Cria novas disponibilidades, possibilita o exercício do pensamento e do discernimento, melhora o sentido de humor…
3. Ao jejum está ligada a prática da esmola, que tem a sua modalidade mais autêntica na condivisão. Lê-se no profeta Isaías: "O jejum que Eu quero não será antes este: quebrar as cadeias injustas, desatar os laços de servidão…? Não será repartir o teu pão com o faminto, dar pousada aos pobres sem abrigo, levar roupa aos que não têm com que se vestir e não voltar as costas ao teu semelhante?". O jejum abre o nosso coração aos outros. A esmola testemunha-o no compromisso por um mundo fraterno.
Por isso, quando, ao começar a Quaresma, os cristãos recebem sobre a sua cabeça o sinal das cinzas, acolhem também a interpelação: "como tornar a cinza em lume?"

José Tolentino Mendonça

Editado por Fernando Martins | Terça-feira, 12 Fevereiro , 2008, 12:13


Beneficiar quem não tem que comer, quem se viu privado de casa por alguma tragédia natural, quem não tem emprego...

Recordo uma conversa com o saudoso padre Armindo Duarte, então pároco do Campo Grande (Lisboa), há já uns quantos anos: dizia ele que a renúncia quaresmal não devia ficar em casa. Isso seria o mesmo que ajudar apenas a família. E acrescentava que a Quaresma deveria ser, "antes de mais, um tempo de profunda revisão de vida e de renúncia a tudo o que pode centrar o homem em si próprio e não em Deus".
Percebo, ao lembrar estas palavras, que falta uma intensa pedagogia da renúncia e da partilha fraterna. É verdade que, colocados perante emergências graves (terramotos, inundações,…), os cristãos respondem com generosidade. Mas também é verdade que essas situações têm respostas generosas de toda a sociedade civil. Os cristãos não fazem mais que os outros, poderíamos então dizer.
Onde os cristãos se devem distinguir dos outros é no espírito que aprendemos nos Actos dos Apóstolos: "Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fracção do pão e às orações. (…) Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum" (2, 42; 44).
Não se trata de fazer igual, mas de recriar, para os tempos de hoje, o mesmo espírito. Ora, é aí, na pedagogia e recriação da partilha, que as comunidades cristãs estão a falhar. Que consciência social temos dos pobres à nossa volta, das milhares de famílias que não têm o dinheiro suficiente para comer e satisfazer as suas necessidades básicas? Dizem os números que, em Portugal, são ainda vinte por cento da população: em cada cinco pessoas à nossa volta, há quatro que vivem bem demais, porque uma vive mal demais.
Claro que existe a renúncia quaresmal. Mas, desde há vários anos, sinto que esta iniciativa, tão genuína e interpeladora na sua origem, está abastardada. Ela começou por ser um modo de nos mobilizarmos para apoiar outros, mais necessitados, renunciando a algum supérfluo do que era nosso. Hoje, ela é uma forma tranquila de descansarmos a consciência com mais um gesto sem consequências: no final da Quaresma, coloca-se uma ou duas notas no respectivo envelope que a paróquia forneceu, entrega-se e a vida continua.
Há outro problema, colectivo: a maior parte dos destinos dados ao dinheiro recolhido na renúncia quaresmal (neste, como em outros anos) tem sido para a construção de edifícios e infra-estruturas eclesiais.
Sei que muitos deles são fora de Portugal, tal como de novo sucede este ano. Em vários casos, os beneficiados são os cristãos e as igrejas dos países lusófonos, aos quais nos ligam laços de história e fraternidade. Admita-se, portanto, que a renúncia quaresmal sai de casa, para utilizar a expressão do padre Armindo. Sai, sai de casa. Mas é, ainda, a nossa família alargada que dela beneficia.
Serve a Quaresma, ainda, para alguma coisa? Interpela-nos o autêntico sentido da Páscoa? O que defendo, então? Que um verdadeiro espírito de partilha concretizado através da renúncia quaresmal deve beneficiar quem não tem que comer, quem se viu privado de casa por alguma tragédia natural, quem não tem emprego. Deve optar, antes, por apoiar o que possam ser projectos de desenvolvimento que beneficiem as pessoas e não apenas infra-estruturas. Há milhões de pessoas no mundo sem nada, à espera de poder beneficiar do progresso de que nós já beneficiamos. Milhões de pessoas que desejam, apenas, construir a sua vida. Enquanto nós optamos por ajudar a construir paredes.

António Marujo, Jornalista

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