de Fernando Martins
Editado por Fernando Martins | Domingo, 02 Setembro , 2007, 16:14

COMO RECORDEI O NOME
DO MEU AMIGO
DA ESCOLA PRIMÁRIA

Quando encontrei o meu amigo João, na avenida principal da cidade, nem sequer soube, de repente, como era o seu nome. Emigrante há décadas, na França, só de tempos a tempos vinha à terra, sempre no mês de Agosto, mês em que eu habitualmente saía para gozar, longe da rotina, uns dias de lazer. Esta coincidência de desencontros a fio fez de nós uns simples desconhecidos.
Saí de casa logo de manhã cedo com vontade de caminhar ao deus-dará, usufruindo de um sol que tardava em aparecer para nos aquecer. Ruas cheias de gente que deambulava a caminho da igreja matriz, para a missa dominical, ou em busca de um lugar num café do centro da cidade para saborear a “bica” e ler o jornal. Das pastelarias e padarias saíam pessoas apressadas com saquinhos de pão fumegante que apetecia comer, logo ali, barrado com manteiga. Carros passavam decerto com destinos marcados e no quiosque eu esperava ansioso o diário que todos os dias costumo ler, na convicção de que iria ter acesso a alguma novidade, daqueles que nos prendem a atenção e nos deixam a pensar.
Da berma da rua, uma voz, forte e alegre, chama por mim, feliz pelo encontro. Olho e vejo um rosto conhecido de há muito tempo. Do tempo da escola primária, da Escola da Ti Zefa, onde o professor Ribau nos ensinou as primeiras letras e nos encaminhou na vida.
- Sabes quem eu sou? – perguntou, certo de que eu o reconheceria, o meu antigo companheiro de classe.
Confesso que os olhos e a voz me não eram estranhos. Mas o nome não me saiu. Disfarcei o mais que pude e comecei a conversar, indagando das suas andanças. Que tinha emigrado para França, que andara embarcado, que já tinha netos, que vivia da reforma e do mealheiro que fora abastecendo ao longo dos anos, que agora andava pelas ruas da cidade à cata de recordações, que tinha encontrado bastantes colegas da escola e das brincadeiras, que se cruzava com amigos dos vários empregos que teve, que era muito feliz. Mas o nome, o nome dele nunca me vinha à memória. Teimosamente eu ia tentando regressar ao tempo das nossas brincadeiras. A conversa nunca mais tinha fim. Eu gostava de o ouvir e de ver a sua felicidade, de estar com um amigo que me fez retroceder até à meninice, levando-me à escola primária, onde, aos sábados, o nosso professor contava sempre histórias carregadas de moral.
Jamais esquecerei a história do jovem que tinha por hábito mentir, gritando no monte, junto do rebanho que apascentava, que havia lobo à vista. Os aldeões acorriam e nada. Regressavam a casa revoltados com a desfaçatez do jovem. Mas um dia o lobo veio mesmo para atacar o rebanho. O rapaz bem gritou para lhe acudirem, mas desta vez os aldeões não responderam ao pedido de socorro. E o jovem pastor lá ficou sem uma das suas boas ovelhas. Depois vinha a lição de moral, que fomos guardando para a vida.
Ali, pregados no chão, as memórias de infância surgiam uma após outras, mas o seu nome, por mais que contornasse as conversas, sempre na esperança de o ouvir da sua própria boca, nunca surgia.
De repente, o meu amigo lembrou o dia do exame da terceira classe. Recordo-me bem. Alinhados em duas filas, esperávamos o nosso professor e os examinadores. Como era costume, entrávamos na sala segundo um critério muito próprio do nosso mestre. A primeira fila a entrar era sempre a que estava mais alinhada, com espaços entre alunos mais homogéneos. Professor atento à disciplina, gostava de premiar os mais respeitadores das leis que estabelecia. Quando o meu amigo se cruzava com ele, junto à porta de entrada, o nosso professor sussurrou-lhe com alguma mágoa:
- Ó João, então não tinhas uns sapatos para calçar neste dia?
E foi assim, com esta história contada pelo meu condiscípulo, que recordei o seu nome, perdido na minha memória durante minutos sem fim.
Fernando Martins

Editado por Fernando Martins | Domingo, 02 Setembro , 2007, 12:07

A CATEDRAL DA LAREIRA

Na Catedral da Lareira
há chamas ajoelhadas,
erguendo as mãos da fogueira,
esguias como as espadas.

São poentes os vitrais…
Ardem pinheiros… Perfume…
As chamas rezam missais
com letras feitas de lume

Quero rezar com vocês!...
Ó Sol! Senhor português,
escuta o meu sonho, atende-o…

Vem ensinar-me a rezar
– tu que és o brando luar,
e a flor, o fruto, e o Incêndio…

José Gomes Ferreira




Nota: Um livro de José Gomes Ferreira, LONGE, perdido na estante, e que me veio à mão, há dias, levou-me a pensar como a memória é curta, tantas vezes. José Gomes Ferreira é um poeta que, durante muito tempo, foi bastante falado. Hoje está simplesmente esquecido. Como ele, muitos outros, que foram, e são, grandes poetas.
LONGE foi publicado em 1921. A segunda edição, que possuo, veio a lume em 1927, quando o poeta, na altura, era Consul de Portugal na Noruega, como o atesta um seu cartão, com dedicatória a Alfredo Brochado.

Editado por Fernando Martins | Domingo, 02 Setembro , 2007, 10:56

A PAZ DA UNIVERSIDADE DE AVEIRO
EM TEMPO DE FÉRIAS
:
A Universidade de Aveiro, conhecida pela dinâmica que imprime a toda a vida académica e pela posição de líder em muitas áreas do Ensino Superior, mostra, em tempo de férias, uma certa e compreensível tranquilidade, nas suas ruas, largos e alamedas. Pelo menos à vista de quem passa, que lá dentro devem estar a fervilhar projectos para o ano lectivo e de investigação que se avizinha.
Numa recente passagem pude ver a paz que por ali existe. Paz que não é sinónimo de sonolência nem de apatia. Só que, sem alunos, aos milhares, a alameda mostra-se assim... Daqui a um mês, se tanto, tudo será diferente.

Editado por Fernando Martins | Domingo, 02 Setembro , 2007, 09:13


DO SIGNO-SAIMÃO
AO PINTO NEGRO

Caríssima/o:

Seja, voltemos atrás aos passeios-visitas escolares. De facto, naqueles tempos, havia-os obrigatórios, para além do castelo de Guimarães.
Fascínio a ponto de os coleccionarmos eram os vidros coloridos ou os frascos dos mais diversos feitios. Assim uma ida a Oliveira de Azeméis impunha-se e era sempre pólo de interesse e de atracção. O olhar das nossas crianças a surpreender os mais pequenos gestos e sopros dos operários era a prova que não se pedia.
Contudo, e a contra-gosto, falar de vidros é recordar o ralho e o tabefe (e fiquemo-nos por aí!...) inevitáveis quando, nos nossos renhidos desafios em plena estrada, inadvertidamente a bola se transviava e estilhaçava o vidro da janela da vizinha... Bem, vamos até às terras de Oliveira de Azeméis:


«No concelho de Oliveira de Azeméis, vamos ao lugar de Silvares, na freguesia de Macinhata da Seixa. Além fica a casa dos Soares de Pinho, estão a vê-la? Agora reparem no brasão, que está voltado para o Largo do Cruzeiro. Ora, é "uma raposa a formar o salto" e "uma águia de pescoço vergado". Qualquer dirá que se trata de "um ameaço, um fantasma dentro de um signo-saimão". E tal medo aquilo inspira às pessoas que como umas mulheres andassem por ali a apanhar trapos, ao darem com o dianho da pedra, assustaram-se mesmo. Pois benzeram-se três vezes e foram buscar um livro de S. Cipriano para completarem a expulsão do mafarrico daquele sítio. Não queriam que ele lhes entrasse na pele, pois então!
Ainda em Macinhata da Seixa, porque é que as pessoas receiam tanto passar pelo caminho do cemitério, da Cavada à igreja? Porque, dizem, por ali apareciam almas penadas, caixões abertos, mesmo fogos fátuos e outros sinais reais ou imaginados que perturbavam os que não tinham itinerário alternativo. Ora, esses sustos todos acabaram porque o velho caminho foi substituído por um estradão que parece não seduzir os espectros...
Também se conta que cada vez que o moleiro da casa dos Barbedo tinha de atravessar a ponte antiga do Requeixo, que se supõe romana, tinha sempre problemas. Sempre o jumento que utilizava no transporte do grão e da farinha tropeçava num calço da ponte. Pois uma vez, o homem rogou a praga:
- Um raio te deite abaixo!
Não se ria o leitor que a praga cumpriu-se.
Porém, a ponte não caiu exactamente de um raio, mas de uma cheia...
Mas há algo que o leitor talvez possa experimentar, se tiver a pachorra de se deslocar a Macinhata da Seixa. Pois procurará, entre a Escravilheira e o Alvão, o conhecido sítio do Sarrado. Ali havia, e julgamos que ainda haverá, um penedo em que se encontrava gravada uma ferradura de cavalo. Ora acontece que quando alguém ali passava e se punha a olhar fixamente para aquilo que diziam ser uma pintura dos mouros, a cabeça começava a andar à roda, como se a pessoa andasse à volta. E o sujeito adormecia, acordando muito tempo depois enjoado. Porém, se o passante olhasse ligeirinho par o penedo da ferradura escutava, isso sim, umas gargalhadas de mulher, como se alguém estivesse a fazer pouco dele ao abrigo da mole granítica!
Também conta uma pessoa de Macinhata que na ladeira do caminho que vai do Alvão para o fundo da Taipa, havia a Presa do loureiro. Pois uma senhora a caminho do moinho, ao passar por ali, viu uma ninhada de pintainhos brancos a meter-se por um buraco. Logo ela os apanhou a todos e meteu-os no avental. Quando chegou a casa, quis metê-los debaixo de uma galinha choca para que estivessem bem abrigados e tratados. Pois não é que, repentinamente, apareceu mais um todo pretinho? E mal a boa mulher esboçou o gesto de se benzer, logo o pintainho negro desapareceu para sempre!»
[V. M.,179]

Manuel

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