de Fernando Martins
Editado por Fernando Martins | Sexta-feira, 27 Julho , 2007, 14:04


A TITA


Estar no quintal, em dias de sol ou de chuva, é um dos prazeres que cultivo, como quem cultiva uma flor para desabrochar na Primavera. Olhar as árvores na hibernação, ver as plantas que nascem sem que alguém as tenha semeado, cheirar o verde ora viçoso ora mortiço da vegetação espontânea, experimentar o prazer de deitar a semente à terra e de ver as novidades, mais tarde, ferirem a crosta areenta e estrumada, tudo isto me encanta.
Numa dessas tardes em que a contemplação me deixava voar ao sabor da maré que os ventos envolviam, a Tita surgiu apressada, como quem deseja chegar o mais depressa possível à meta que o seu instinto alimenta desde que nasceu. Passa por mim ostentando uma alegria inusitada e corre, corre, sem aparente explicação. Depois cheira tudo, em busca não sei de quê. Dou comigo a pensar que isso já nasceu com ela. Chama o companheiro Tótti, grita mesmo por ele, em jeito de quem quer alguém com quem possa partilhar a alegria de uma liberdade conquistada. Tótti dá-lhe o gosto e corre também, mas a Tita, logo depois, volta ao seu prazer de procurar.
Todos os dias faz isso sem desânimo. Investiga os recantos, escava no chão e tenta arrastar velhos troncos carcomidos pelo tempo. Não há pedra, por mais pesada que seja, que lhe resista. Cheira, com faro apurado, toupeiras e ratos do campo, sobressalta-se quando vê passar, à cata de sementes ou de um pingo de água, a passarada. Aqui perde a cabeça e agita-se. Ora se desloca rastejando por debaixo das árvores, ora se lança em louca correria na ânsia de apanhar uma rola mais pachorrenta, uma pomba mais distraída, um melro com cara de esperto.
Não é por fome que a Tita se entretém assim todas as tardes no meu quintal. Come bem às refeições, e fora delas, e não mostra, por isso, carências alimentares. É o instinto de caçadora que a obriga a fugir da monotonia de um ser normal. O instinto que herdou dos seus progenitores e que a natureza vai alimentando. Tudo o que mexe a faz olhar atenta. E a maioria das vezes não descansa enquanto não faz seu o que a provocou.
Quando vejo a Tita no seu labor diário, em liberdade feliz não muito comum, fico a pensar na sua história de vida, já com alguns anos bem registados na minha memória e partilhados por toda a família.
A Tita é a rainha de que todos se lembram durante o dia. Condiciona cada um às suas exigências, aos seus desejos, à sua vontade de brincar, de correr sem mostrar cansaço, de buscar algo nem sempre fácil de adivinhar. Espera, pacientemente, a chegada a casa de todos e a todos desafia, com saber e arte, para uma brincadeira qualquer. Sem enfado, como quem tem no âmago uma mola carregada de vitalidade. Mas na hora da sesta, se pressente que tudo à sua volta pára, então estende-se ao comprido no sofá grande e dorme tranquilamente. Lá para o fim da tarde, a vivacidade reaparece até à exaustão.
Quando alguém sai de casa fica triste. E quando é a sua mais-que-tudo que se ausenta, não resiste e chora. Grita mesmo ao portão que a separa da rua. E ali fica, triste e acabrunhada, com o desgosto de se sentir só ou de perder a razão de ser da sua felicidade. À chegada da sua amiga querida, volta a alegria e nada a faz parar. Atira-se a ela, tenta falar-lhe, dá pequenos soluços como quem deseja saber a causa da demora. Uns afagos, umas palavras amigas, uma corridinha e tudo volta à normalidade. Feliz por estar com a Lita, a pessoa que a adoptou há algum tempo.
A gratidão é um sentimento que está a cair em desuso. A Tita, contudo, não vai por aí. Quem lhe faz bem tem amiga para toda a vida. Foi o que aconteceu com ela.
A Tita veio da Covilhã com uma família que não a sabia amar. Marido e esposa eram por natureza agrestes. Iam para o emprego, logo de manhã, e deixavam a Tita, ainda bebé, fechada numa varanda. Com frio ou com calor, a sua alegria e a sua vivacidade, já notórias, estavam presas. Comia depressa o que lhe deixavam e por ali ficava à espera da ternura que nunca chegava e de um gesto de amizade que nunca experimentou nem conheceu. Conheceu, isso sim, os pontapés dessa gente agressiva e sem piedade. Aos fins-de-semana tudo piorava. Enquanto o casal ia à terra, a Tita ali permanecia limitada a uns três metros quadrados. Comia, como sempre, a ração toda de uma só vez, bebia a pouca água que lhe deixavam. Quando a fome e a sede apertavam, no final de domingo, comia e bebia, qual náufrago esfomeado, as próprias fezes e a urina.
A tristeza apoderou-se da Tita e quando sentia o casal refugiava-se num recanto qualquer, com medo dos inexplicáveis castigos. A sua sina estava a tornar-se insustentável. E disso dava conta, com olhares carregados de mágoa, a quem ousava apreciar a sua desdita.
Se alguém a pudesse ajudar a sair daquele cativeiro; se alguém a quisesse e soubesse amar de verdade e como gente, jamais esqueceria esse gesto. Toda a vida! Terá pensado e prometido a Tita em momento de mais tristeza.
Num fim-de-semana alargado, numas férias da Páscoa, a Tita mais uma vez foi condenada a ficar prisioneira na varanda do segundo andar dum prédio com dezenas de moradores, em zona residencial da cidade. Com cinco dias de cativeiro, os seus gritos de dor, pelo abandono e pela fome, não tardaram, esgotadas que foram as provisões deixadas pelo casal. E não tardaram também os gestos de solidariedade de quem não gosta de ver o sofrimento seja de quem for.
Alertada a polícia local, gerou-se um movimento de apoio à vítima de abandono. Protecção civil e bombeiros, apoiados por uma brigada da polícia vocacionada para situações como esta, montaram o esquema libertador. Escadas, roldana e cesta de resgate foram preparadas. A Tita não podia continuar a ser vítima de maus-tratos.
As janelas dos prédios vizinhos encheram-se de gente curiosa e condoída. Transeuntes questionavam quem estava para saber do que se tratava. A Lita dava explicações, deixando transparecer o seu desgosto por haver gente sem sentimentos. E quando a Tita foi salva, os rostos dos que assistiram à cena iluminaram-se de alegria.
Com todos os cuidados, a Lita assumiu-a como adoptante, até se encontrar uma solução definitiva. Acarinhou-a, alimentou-a, ofereceu-lhe uma cama digna. Um dia e outro. E mais um dia e mais outro.
A gratidão da Tita ia aumentando. Impossível a separação. Quando pressentiu isso, o instinto garantiu-lhe que tinha agora uma nova família que a amava. Uma família para ela amar até ao fim da sua vida.

Fernando Martins



Editado por Fernando Martins | Sexta-feira, 27 Julho , 2007, 13:55
Costa Nova, com velas à vista



VERÃO UM POUCO TRISTE, MAS...
:
O Verão ainda não chegou verdadeiramente... Há muito vento e o calor, aquele calor que nos obriga a procurar o fresco das sombras ou da brisa da ria ou do mar, ainda não se dignou aparecer com aquela força que gostaríamos. De qualquer forma, sabe sempre bem estar ali ao lado da laguna que enche os nossos sonhos. E se houver velas ao vento, tanto melhor...
Boas férias de Verão para todos, mesmo que sem muito calor.

Editado por Fernando Martins | Sexta-feira, 27 Julho , 2007, 13:37

O MORTO QUE MATOU O VIVO

Caríssima/o:

Há outro grupo de imigrantes que demandou a Gafanha e que terei de mencionar: o de S. Pedro do Sul; e não só pelo seu número mas ainda mais por um dos seus membros ter passado para a minha Família.
Rabuscando a lenda, contudo aconteceu o inesperado e “o morto que matou o vivo” fez-me reapreciar a figura bondosa e cativante de um Amigo que todos os sábados me entrava pelo portão do quintal e me trazia uma estória nova. Foi da sua boca que ouvi pela primeira vez este retrato do nosso povo. E como ria e nos fazia rir o bom do Padre António Nédio!
Vamos então partilhá-la e dedicá-la a todos os Antónios que se têm cruzado nos caminhos por mim trilhados. Se quiserem podem não ler as outras duas.

1. «Lá para Covas do Rio, a cinco léguas de S. Pedro do Sul, conta-se a lenda do morto que matou o vivo. Dizem que foi entre a aldeia da Pena, que na altura ainda não tinha cemitério, e a aldeia de Covas, que o tinha. E o trajecto era forçosamente feito a pé, em que havia quatro homens para o transporte da urna. Pois a dada altura, conta o povo, um dos homens de trás, lá escorregou ou coisa assim, e os outros não seguraram tão bem e o caixão caiu-lhe em cima, matando-o! Foi assim que o morto matou o vivo, dizem por lá...
2. Pois bem, neste concelho fica a Serra de S. Macário, cujo cimo sobe a mil metros. Pois conta a lenda que «Macário era caçador e, num dia de caça, acompanhado de seu pai, pensando que arqueava a flecha contra um javali, feriu mortalmente o pai. Em desespero, correu de um lado para o outro o sucedido, mas sem nunca ter coragem de voltar a casa. Daí em diante viveu sempre na Serra, em isolamento, sobrevivendo de esmolas e penitenciando-se pelo seu erro. Um dia pediu a alguém que lhe desse um montinho de brasas para fazer uma fogueira. Obtendo a graça do seu benfeitor, pegou as brasas com as mãos sem se queimar, ficando desde aí com o nome de santo. Morreu e viveu nesta serra junto à capela onde ainda hoje muitas pessoas o veneram. Em seu nome é feita uma festa anual que ocorre no último domingo de Julho.»
3. Desde que foi feita a Ponte do Cunhedo sobre o Vouga, é muito simples a passagem do rio, não importa a estação do ano. Porém, esta lenda passa-se – se é verdade que as lendas se passam fora da cabeça das pessoas - quando ainda não havia tal passagem, embora o convento de S. Cristóvão já lá estivesse. Bem, e estamos numa bela manhã de Junho, acompanhando a jornada do frade superior dessa pequena comunidade religiosa. Na sua bela égua Estrela, o frade acompanha a margem direita do Vouga. Vai devagar, gostava daquele longo passeio que lhe proporcionara uma visita pastoral. Umas roupas aqui, um dinheirito ali, boas palavras além, conhecia bem aqueles descaminhos, mas também se confiava ao instinto do animal. Dera uma boa volta e regressava satisfeito. Mas o tempo é que estava a mudar de aspecto conforme entravam nas negruras da noite.
A égua era fina e o cavaleiro dava-lhe rédea solta, para lhe evitar constrangimento, mas ela parara e acenara com a cabeça, como a dizer ao frade que se segurasse bem porque o pior ainda estava para vir. E o pior eram as poldras, que ela soube atravessar com extremo cuidado. E daí a pouco o frade estava no convento, quase sem dar por isso.
Nessa noite, ele soube que, apesar de tudo, passara por milagre o Rio Vouga. Não era só a sabedoria da Estrela a salvá-lo, e no dia seguinte voltou ao sítio das poldras e, desmontando, ficou estarrecido, vendo claramente o perigo por que passara. Eram tamanhos os estragos que a tempestade da véspera fizera! De repente, sentiu um frémito percorrer-lhe o corpo, encostou-se ao pescoço da égua e apercebeu-se que o rio já não era o Vouga, mas outro, muito mais longo e profundo. Já apoiado numa árvore, cadáver há já umas horas, aí o foram encontrar outros seus irmãos que o procuravam...»
[V. M., pg. 242]
Manuel

Editado por Fernando Martins | Sexta-feira, 27 Julho , 2007, 12:53
FÉRIAS EM FILOSOFIA

A vida são dois dias, o Carnaval, três. Diz-se a brincar, como um hábil jogo de palavras e números, como se nada, de facto, se quisesse dizer. Estes três dias acabam por ter algo de religioso. Três dias de festa estridente que precedem a quarentena de cinzas e penitência. Ou a alusão aos três dias de Paixão de Cristo que terminaram na Ressurreição. Ou escondendo ainda um outro conceito: a vida dura pouco, menos que um divertimento de Carnaval e por isso não vale a pena perder tempo com o que não é aprazível. Indo mais fundo parece insinuar-se uma filosofia de vida retintamente epicurista que valoriza antes e acima de tudo o prazer.
As viagens ideológicas demoram o seu tempo e as mudanças, por muito velozes que pareçam, operam-se com leis rígidas que não permitem que a história evolua aos saltos.
Entremos um pouco mais no concreto. Vivemos uma sociedade de progresso, trabalho, produção, eficácia, rendimento. Mesmo com o apoio da técnica e da tecnologia, nunca o homem pode dizer que o seu tempo de vida é de lazer, como aconteceria a Adão, não fora o pecado original.
Mas o facto é que o conceito de Carnaval como divertimento de choque, excitação, entretenimento esgotante, vai-se estendendo a outras áreas. O repouso já não é o que era. E para muitos, o próprio tempo de férias constitui uma multiplicação – um compacto, como ora se diz – de entretenimentos que se escolhem como em carta de vinhos e se consomem até à embriaguês. Umberto Eco fala mesmo da carnavalização da vida face aos espectáculos constantes que as pessoas procuram, nomeadamente através dos media que são os agentes deste divertimento non stop quer de informação quer de ficção.
Aparte outros considerandos parece urgente rever a concepção de repouso, divertimento, festa, corte do trabalho quotidiano (quantas vezes o fim de semana é concebido como tempo de orgia!). Com tudo isso, há valores recônditos que não afloram nos tempos comuns de trabalho e rotina. Há pausas, silêncios, escutas, olhares que só se descobrem num certo despojamento de alma. Será por isso bom que as férias se não transformem em repetição programática do mesmo. Se assim for, semana após o recomeço do trabalho estarão praticamente gastas.

mais sobre mim
Julho 2007
D
S
T
Q
Q
S
S

1
2
3
4
5
6
7

8
9
10
11
14

15
16
18
20
21

22
24
25
28

29
30
31


arquivos
pesquisar neste blog
 
blogs SAPO
subscrever feeds