A PESCA NOS DÓRIS
Falar nos dóris, na pesca nos dóris, leva a minha geração a recuados tempos em que nos víamos transportados para bordo do navio acabadinho de atracar onde íamos abraçar o familiar roído de saudades...
Quantos dias nos sentámos a olhar para a vela que o tio Mário içava no quintal para a enxugar e experimentar como reagia aos sopros da nortada! No fio secava a roupa que em breve seria ensacada para a nova viagem!...
Ou então no Esteiro, a remos ou à sirga, no bote do tio naquelas aventuras pesqueiras que nos deliciavam...
De outra vez, na seca do Coimbra, o Pai e o tio Manel ajustaram a reparação e a construção de botes novos...
Recordar conversas de familiares e amigos... Oh, palavras mágicas de naufrágios, incêndios, conflitos, pescas quase milagrosas!...
Façamos silêncio, ponhamos o dedo na página 19 do livro “Nos Mares do Fim do Mundo”, de Bernardo Santareno, e que o tempo pare:
A PESCA À LINHA
o bom Jesus, Nosso Senhor! ... »
É a hora. São quatro da manhã. Os homens vão saltando dos beliches à medida que acordam e, ainda ensonados, benzendo-se, respondem ao vigia:
«Que nos remiu em sua santa Cruz,
louvado seja!»
É madrugada e as sombras que cobrem o mar recuam ante a claridade frígida, cor de pérola, que alastra sobre o Oceano.
Não há brisa, é dia de pesca.
Almoço frugal logo em seguida e, preparados os botes (os dóris), prontos anzóis, linhas e isco:
- «Arriando, com Deus!»
Lá vão, cada qual no seu barquito, para a grande aventura quotidiana.
E cada qual pensa, o coração sempre apertado neste momento: «Voltarei hoje? Ai, minha Nossa Senhora ... »
Há um que leva aos lábios uma medalha - Senhora da Nazaré, Senhor dos Navegantes ... - que traz pendurada ao peito; outro, disfarçando mal, acaricia o retrato dos filhos que tem oculto no bolso; outro ainda, mais novo, um «verde», em vago sorriso crispado pelo frio e pelo medo, promete como quem reza: «Hei-de fazer a nossa casa com o dinheiro desta viagem, Maria, ... casaremos pelo Natal! ... »
- «Arriando, com Deus!»
Todas as madrugadas o capitão os despede com este mesmo grito e, em cada dia, ele fica longo tempo debruçado na amurada, apreensivo, com uma asa nostálgica a sombrear-lhe os olhos duros ...
Esta é a pesca à linha, nos bancos da Terra Nova e da Gronelândia.
Quem pesca assim? Só os portugueses, no mundo inteiro!
Lá vão eles: um homem e um barquito frágil .. frente ao mar tão forte e tão volúvel, à neblina que pode tornar-se cerrada, ao vento que pode levantar-se rijo ...
Um homem sozinho, frente ao infinito!!
E cada barco alivia no mar, com a escrita da sua quilha, o peso duma interrogação ansiosa, logo apagada pela espuma leve e branca ...
Aí pelas duas, três horas da tarde, os dóris começam a voltar ao navio .
Mas às vezes não voltam: sob o peso excessivo do pescado, ou pela fúria súbita da brisa, o barco afunda-se ...
Outras vezes, a névoa densíssima fá-los perder o navio-mãe: e são longos dias à deriva, sem água, sem alimentos, até que ...
- «O Zé Robalo não voltou!»
Lá na curva do horizonte, o Sol, redondo, enorme e vermelho, desce rápido, logo sugado pelo mar impassível .. : redondo e rubro, como o rosto dum deus pagão, sangrento e implacável.
- O Zé Robalo não voltou! ...
“Ah, mar! ah, mar dum cão! malvado,
mar terrible! na há pior matador
qu'ati. na há pior castigo qu'a
vida dum pescador!”»
Ai, ó meus amigos,e a Mulher e os Filhos só após a entrada do navio, já lá vão uns meses, é que choram que “o Zé Robalo não voltou!...”.
Manuel