Uma igreja de irmãos, não uma sociedade de classes
António Marcelino
«É verdade que não faltaram, ao longo dos séculos, cristãos conscientes e corajosos, muitos deles santos, a denunciar, de modo profético, este desvio para o profano que tocava o essencial da Igreja e da sua missão. Foram verdadeiros profetas e, por isso, não passaram sem as incompreensões e até as perseguições, próprias de quem denuncia infidelidades e toca em interesses pessoais e de grupo, os mais diversos.»
A Igreja é, acima de tudo, manifestação do mistério de Deus, sinal e instrumento do seu desígnio de salvação universal. Este desígnio concretiza-se e torna-se visível num Povo de irmãos, o Povo de Deus na sua realidade histórica. Passaram-se séculos a ver a Igreja à maneira das sociedades civis, bem organizada para os fins religiosos e não só para estes. Apesar de, desde há séculos, se professar a fé numa “Igreja santa, católica e apostólica” que, em tempos, se dizia também “romana”, poucos a viam Igreja Comunhão com Deus e com os outros cristãos. As “classes” apagaram a comunhão.
É verdade que não faltaram, ao longo dos séculos, cristãos conscientes e corajosos, muitos deles santos, a denunciar, de modo profético, este desvio para o profano que tocava o essencial da Igreja e da sua missão. Foram verdadeiros profetas e, por isso, não passaram sem as incompreensões e até as perseguições, próprias de quem denuncia infidelidades e toca em interesses pessoais e de grupo, os mais diversos.
A necessidade de voltar ao Evangelho crescia em muitos sectores. António Rosmini, um padre italiano que morreu em meados do século XIX, agora elevado aos altares, fala com “uma arriscada ousadia” das “chagas da Igreja”, a necessitar de cura. A ousadia saiu-lhe cara. Tempos depois se viu que só um concilio ecuménico tinha autoridade para tomar medidas a nível universal e marcar um novo rumo à comunidade eclesial.
No campo doutrinário o caminho do regresso às origens foi de um enriquecimento extraordinário. A Igreja, reflectindo sobre si mesma, centrou a sua existência no Mistério de Deus, afirmou-se como Povo, no qual e partir do qual se operava a salvação de Deus, tomou consciência da comunhão a que é chamada em cada dia, afirmou que a hierarquia, necessária ao crescimento da comunidade não se traduz por honras ou poder humano, mas por serviço, deu lugar de merecido relevo aos leigos, em virtude da sua vocação e missão, su-blinhou a vocação de todos os cristãos à santidade, pôs em realce a vida dos consagrados e a importância da prática dos conselhos evangélicos, deixou claro o sentido peregrinante da Igreja, rumo à perfeição plena, mostrou, por fim, Maria, Mãe de Deus, como modelo para todos os cristãos na sua vivência diária. Noutro documento fundamental estabelece-se a relação Igreja – Mundo, como uma relação solidária.
Esta visão espiritual e evangélica marcava a vida da Igreja, como dom de Deus ao mundo e como luz de Cristo para todos os homens e obrigava a um reconhecimento cuidadoso do caminho a seguir, tendo em consideração consequente o que nela é essencial e permanente, e o que é acidental e, por isso, transitório e efémero.
Os papas do Concílio logo começaram por expurgar o que podia ofuscar a imagem da Igreja, dando exemplo de situações a ultrapassar e a remediar, frisando com factos, que esta operação necessária devia continuar sem demoras, nem desvios, por parte de todos. Paulo VI foi, desde o início, clarividente e corajoso nas reformas propostas, como as expressões da colegialidade, os sínodos dos bispos, os conselhos de correponsabilidade pastoral. Chamou ao governo da Igreja gente de diversos países, iniciando assim um processo denunciador do “carreirismo” eclesiástico, tipo italiano, deu valor às conferências episcopais, criou novos órgãos de governo eclesial consentâneos com as exigências do tempo, multiplicou os gestos pessoais de humildade e de diálogo. Como eu próprio o posso testemunhar, não perdia uma oportunidade para evidenciar a importância do Concílio. Outros padres conciliares, cardeais e bispos, em consonância com o Papa, propu-gnaram a simplificação das representações diplomáticas, dos títulos e das vestes dos clérigos, a revisão das estruturas eclesiásticas, a descentralização de Roma… Reformar com seriedade é uma atitude de conversão. Não seria fácil e iria levar o seu tempo. Não era, porém, de supor que, passados quarenta e cinco anos, se mantenham à revelia de orientações conciliares, situações sem que nada pastoralmente as justifique.
Seria injusto dizer-se ou pensar-se que, em todos estes anos, nada se fez. Muitas coisas não teriam sido possíveis sem o Vaticano II, como já dois papas não italianos, o despertar do laicado apostólico, a preocupação de muitos bispos e padres de andarem por caminhos conciliares, a descoberta da importância da Palavra de Deus e da Liturgia, a organização da pastoral da caridade, o sentido de comunidade em paróquias e grupos, o dinamismo missionário, as exigências de diálogo com a sociedade, a sensibilidade ecuménica, a independência do poder civil… Mas persistem ainda muitas situações não condizentes com a teologia conciliar, mormente do Povo de Deus, que entravam o caminho renovador e desvirtuam o rosto de uma Igreja, que se diz “serva e pobre”. Caminhos que esperam, quem sabe, por alguns mártires do Concílio…