A cruz do mundo
Anselmo Borges
Se me não engano, foi Pinheiro de Azevedo quem, em 1976, instituiu o feriado de Sexta-Feira Santa. Penso que é um dos dias que mais fundo calam no coração dos portugueses. Sempre me admirou o facto de, perante a imagem de Jesus crucificado - queiramos ou não, é uma imagem de horror -, mesmo as crianças não entrarem em sobressalto emocional negativo. A partir do que sempre lhes foi ensinado, interiorizaram que ali está o amor. Jesus morreu como testemunha da verdade e do amor.
Um número incontável de homens e mulheres, nos 2000 anos de cristianismo, olharam para aquele crucificado e, no meio do seu sofrimento e angústia, nos becos sem saída da vida, perante os horrores brutos do mundo e da existência, receberam luz, esperança, alívio, inspiração.
Desgraçadamente, não foi só isso. Com Constantino, a cruz tornou-se sinal de poder e vitória do Império. Utilizou-se a cruz de Cristo para humilhar e matar nas Cruzadas. Na época dos Descobrimentos, a cruz acompanhou a espada nas conquistas e destruição de civilizações inteiras. Lá estava presente nas condenações da Inquisição. O filósofo Hans Blumenberg sugeriu que o cristianismo morreu na Europa quando Giordano Bruno, em 1600, na iminência de ser queimado vivo, cuspiu na cruz que o frade lhe apresentou para beijar, mas também há quem observe - com mais razão, creio - que cuspiu para o frade, representante da Igreja inquisitorial, e não para a cruz. Durante séculos, bispos, cardeais, papas, escarneceram da cruz de Cristo, usando triunfalmente ao peito cruzes de ouro, com pérolas e diamantes. E o que é mais: pregou-se que Jesus foi crucificado, porque Deus precisava do seu sangue para aplacar a sua ira. Transformou-se assim o Deus-amor num Deus sanguinário, vingativo, cruel e sádico. Para manter a dignidade, perante esse Deus, só se pode ser ateu.
Em face da cruz de Cristo, é-se confrontado com o calvário do mundo. Quem crê no destino fatal ou tem uma concepção dualista não se põe a questão com a acuidade dramática de quem acredita no Deus transcendente, criador e bom: porque é que Deus não impede o mal no seu horror? A História do mundo é verdadeiramente uma ecúmena de sofrimento: assassinatos, guerras, violência, fracassos no amor e na profissão, doenças, fome, humilhações, torturas, falta de sentido, traições..., no fim, a morte. Também a dor dos animais. Mas sobretudo o sofrimento das crianças e a condenação dos inocentes. Hegel referiu-se à História como um Schlachtbank: um açougue ou matadouro.
A história da filosofia está atravessada por tentativas de teodiceia: na presença do mal, justificar Deus racionalmente. Mas Kant referiu-se ao fracasso de todas as tentativas de teodiceia. Onde estava Deus em Auschwitz, por exemplo, ou no Haiti, na Madeira...? O mal aparece como "rocha do ateísmo".
Perante o mistério impenetrável de Deus e do mal, o crente cala. Como Job, na Bíblia, tem o direito de gritar, de protestar, de revoltar-se contra um Deus que lhe parece cruel: "Clamo por ti, e Tu não me respondes; insisto e não fazes caso. Tornas-te cruel comigo." Mas, depois, cala-se e entrega-se confiadamente. A última palavra ainda não foi dita e espera que pertença ao Deus da misericórdia.
Aliás, na sua última obra, Was ich glaube (A Minha Fé), resultado de uma série de lições, aos 80 anos, na Universidade de Tubinga, a cada uma das quais assistiram mil pessoas, pergunta o teólogo Hans Küng: "O ateísmo explica melhor o mundo? A sua grandeza e a sua miséria? Como se também a razão descrente não encontrasse o seu limite no sofrimento inocente, incompreensível, sem sentido!"
Também Jesus, no Gólgota, foi confrontado com o abandono dos homens e de Deus. E, naquele abismo, gritou aquela oração que atravessa os séculos: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?"
Aparentemente, foi o fim. Pouco depois, os discípulos reencontraram-se a partir de uma experiência avassaladora de fé: Jesus, o crucificado, não caiu no nada, mas vive em Deus para sempre. Sem esta fé, que testemunharam até ao martírio e que mudou a História, não haveria cristianismo
In DN