Caminhos de conversão de há muito abertos
António Marcelino
Falava da Igreja conciliar, da igual dignidade de todos os baptizados, da hierarquia como serviço, da necessidade de acabar com coisas que se introduziram na Igreja, alheias ao seu espírito e missão. E exemplifiquei dizendo, então, que mais que conferir dignidades humanas, era preciso promover intensamente a dignidade radical e a igualdade de todos os filhos de Deus. Havia na assembleia monsenhores feitos de fresco, mesmo ali à minha frente. Eu não sabia. Uma gargalhada alargada e os rostos fechados dos novos dignitários. No fim, o bispo disse-me fraternalmente: “Sabe, eles gostam!...” No mesmo tom e sentido fui testemunha de outros casos iguais. Passados mais de quarenta anos de Concílio, eles ainda gostam e Roma entra no jogo…
Numa cultura moderna e pós-moderna não se pode mais falar de Deus, mostrar um rosto novo da Igreja, enfrentar o drama do divórcio entre a fé e a cultura, como se vivêssemos em tempos de cristandade, como se os hábitos tradicionais e rotineiros pudessem gerar cristãos vivos e activos ou dar mais zelo apostólico a quem veste honras de vermelho ou recebe condecorações pontifícias.
O convite de João XXXIII ao “agiornamento” ou à actualização evangélica, inspirados no exemplo de Cristo e das primeiras comunidades cristãs, levava a novos caminhos, sempre em aberto. A Igreja de Cristo há-se seguir cada dia o seu único Mestre e Senhor, aprendendo d´Ele a assumir, de modo claro, o seu projecto de salvação universal. Igreja que vai ao encontro de todos, que se abre a todos os que lutam e sofrem pela verdade, pela liberdade e pela justiça, que fala sempre uma linguagem inteligível de amor, de misericórdia e de esperança, que gera à sua volta alegria e paz, que ajuda as pessoas a serem felizes, dignas e protagonistas da sua história e da história humana, que sabe que “o caminho de Deus é o homem” e que “a glória de Deus é que o homem viva”. Por isso, faz sua a causa dos pobres, dos excluídos, sociais e morais, conforta-os pelo seu testemunho de serva e pobre, luta, ao seu lado, pela sua dignidade e pelos seus direitos, e, como mãe e mestra, os ajuda a assumir os seus deveres.
A Igreja necessita assim, com urgência, de dar lugar central a Jesus Cristo, que a ensina a servir, não a ser servida; que a ensina a ser comunhão, não sociedade de classes; que a ensina a lavar os pés, não a sentar-se em tronos para receber honras; que lhe ensina a sabedoria da cruz, não o caminho das glórias humanas; que a abre à convicção experimentada de que há mais alegria e honra em dar do que em receber. Foi este caminho evangélico que o Concílio reabriu, pedindo para se retirar dele o lixo e os tropeços que o tempo acumulou e tornaram mais difícil o caminhar da Igreja pelos caminhos calcorreados diariamente pelos homens e mulheres de cada tempo…
É esta a conversão interior, tornada visível, que o Vaticano II esperava e espera.
A Igreja em Concílio não partia do nada. Apenas fez que se soltassem vozes antes silenciadas; deu atenção a manifestações livres do Espírito, até ali pouco atendidas; mostrou o valor renovador da colegialidade apostólica e do “sentido da fé” do Povo de Deus; chamou a atenção para “os sinais dos tempos”, como apelos a novos rumos; mostrou que o mundo não é um inimigo a combater, mas realidade com que se deve dialogar; foi capaz de vencer e mostrar a importância de tensões internas; disse que outros discípulos de Cristo não eram concorrentes, mas irmãos…
Paulo VI tornou-se o grande impulsionador do Concílio. João Paulo I mostrou que a pedagogia do sorriso aproxima, estimula e ajuda a renovar. João Paulo II fez-se “ao largo” e levou a mensagem a todos os recantos da terra. Bento XVI mostra a coragem da decisão em momentos difíceis, do diálogo necessário com um mundo novo, da aceitação das humilhações como caminho de conversão eclesial.
Os tempos convidam a olhar insistentemente para Deus, donde vem a luz e onde reside a esperança. O caminho pede urgência. Esta pede humildade, confiança, fidelidade.
Uma Igreja “outra” exige o exemplo daqueles que Deus constituiu como primeiras testemunhas e não dispensa a comunhão, activa e confiante, dos que se assumem como discípulos de Cristo. Sempre e para todos num clima de amor. Só o amor constrói a obra de Deus. Só o amor, lúcido, coerente e gratuito, é fonte de renovação.