de Fernando Martins
Editado por Fernando Martins | Quarta-feira, 24 Março , 2010, 16:40

 

 

"A comunicação social

vive um período fascinante e perverso"

 

Dinis Manuel Alves é professor de Comunicação Social em Coimbra e Aveiro (no ISCIA) e responsável pela comunicação da APA (Administração do Porto de Aveiro). Parte do trabalho que desenvolveu para doutoramento em Comunicação Social, concluído em 2005, acaba de ser publicado com o título “A informação ao serviço da estação. Promoções, silêncios e desvirtuações na TV” (ed. Mar da Palavra) – um livro importante para entendermos o que os telejornais nos transmitem. Entrevista conduzida por Jorge Pires

 

 

 

CORREIO DO VOUGA - O título do seu livro é “A informação ao serviço da estação”. Em termos de princípios e ideais, não devia ser precisamente o contrário?

MANUEL DINIS ALVES - O antetítulo denuncia ao que venho: “Promoções, silêncios e desvirtuações na TV”. Refere-se ao facto de as estações utilizarem os telejornais para promoverem produtos da casa ou do grupo a que pertencem e desvirtuarem a informação. É uma denúncia ao que se passa no jornalismo televisivo.

 

Este livro é o resultado de uma longa investigação…

A tese foi defendida em Abril de 2005, na Universidade de Coimbra. Analisei o circuito de alimentação das notícias tendo por base os telejornais das generalistas SIC, RTP1 e TVI mais a RTP2. A tese chama-se “A Agenda, montra de outras agendas. Mimetismos e determinação da agenda noticiosa televisiva”. O que eu provo na tese é que, ao contrário do que o cidadão pensa, o que passa na informação da televisão é determinado por agendas prévias dos jornais e das rádios. A televisão domina a actualidade, mas na prática faz um jornalismo de animação daquilo que já foi dado antes.

 

Chega a conclusões a partir de observação “no terreno”.

Durante cinco semanas estive a observar as redacções. Passei uma semana em cada redacção dos quatro canais mais uma na RTP-Porto. Foi uma espécie de tropa. Eu entrava com o primeiro jornalista e saía com o último. Acompanhei todo o processo de produção e lancei um inquérito de cerca de uma centena de perguntas aos trezentos profissionais. Tinha ainda sete gravadores de vídeo em casa, que gravaram quatro mil e tal telejornais para analisar.

 

 

 

Um dos jornalistas televisivos disse-lhe que tudo é infoentretenimento. É mesmo?

Ele tem a sua razão. Eles estão a animar aquilo que foi dado pela manhã. Notei duas rotinas automáticas dos editores quando chegam às redacções. Primeiro, vêem as audiências: “Demos porrada a…”; “o telejornal esteve bom, o que nos tramou foi…” Depois, consultam o clipping [recortes dos jornais da manhã] e decidem: “Uma equipa para isto, outra para aquilo”… Que conclusão tiro? Mais de um terço das notícias a que assistimos nos telejornais é informação requentada.

Por outro lado, temos principalmente uma televisão que se anuncia a si própria através de promoções. As “promo news” apareceram na agenda pública a quando da abertura de telejornais com o “Big Brother”. Mas eu mostro que a TVI não é a detentora do “pecado original”. Todas o fazem. A RTP sempre o fez, com o Festival da Canção, com a festa dos trabalhadores, ou a promoção de telenovelas como a “A Lenda da Garça”. O meu trabalho não se preocupa com a denúncia de grandes casos – como o tratamento da tragédia de Castelo de Paiva ou do assassínio de Fortaleza – mas com as coisas mais pequeninas que vão fazendo a nossa cabeça e das quais não nos damos conta.

 

O seu livro aparece com uma cinta que diz “Como eles nos enganam” e, além de promoções, fala também de silêncios e desvirtuações. Quer dar exemplos?

Há a contaminação das notícias pela pu-blicidade da própria estação, silenciam-se feitos das outras e desvirtua-se a informação. Quando a RTP perdeu os direitos de transmissão da Volta a Portugal em Bicicleta, apesar de estar salvaguardado o direito de transmitir uns minutos, não deu uma única notícia. Nem sequer o vencedor, no último dia. Estamos nos silêncios. São coisas condenáveis. Fala-se das derrapagens dos jornalistas em relação àquilo que se publica, mas o silêncio é terrível. É difícil perceber, porque ninguém está a ver os canais todos ao mesmo tempo. Mas acontece.

Ora, no ano seguinte, a Volta regressa à RTP. Então, a SIC dá muitas notícias da Volta. Podíamos pensar que se comportou melhor, que teve respeito pelos telespectadores, mas o que aconteceu foi que houve um escândalo de “dopping”. A SIC apareceu para dar o negativo. Estamos nas desvirtuações. Outro caso. Quando a TVI avançou com transmissão de touradas, a SIC não dava nada sobre o assunto. Mas um dia caíram umas pedras no Campo Pequeno. Feriram um turista. A TVI não deu nada. Devia ter dado. A SIC lá estava a fazer um directo. Outro exemplo. Em 1999, 15 ou 17 crianças fogem de um lar no norte do país. Andaram a monte até à noite. No dia seguinte, a RTP dizia que os jovens foram encontrados por uma equipa da RTP. Na SIC, dizia-se que foram encontrados pela GNR; na TVI, pela Judiciária. E qual foi a verdade? Na realidade, foi uma equipa da RTP com um repórter do Jornal de Notícias, que também foi omitido pela RTP. Tratou-se de esconder os feitos da concorrência.

 

As televisões continuam ainda hoje a fazer silêncios e desvirtuações? As práticas do período que estudou são extensíveis à actualidade?

É recorrente. Por honestidade científica, não posso dizer que isso acontece. Não analisei. Mas tenho impressões e até mais do que impressões. Noto que até pode acontecer mais devido há concentração dos grupos de comunicação social. Vemos muitos mimetismos entre o “Expresso” e a SIC. Ainda há dias, era manchete no “Expresso” a ida de procurador do caso Freeport a Inglaterra. A SIC Notícias citava o “Expresso”. Ora, logo de manhã, houve um desmentido da Procuradoria-Geral da República. A SIC não deu nada. Estaria a desmentir-se e a desmentir um jornal do grupo.

 

Olhando para os tempos actuais, assiste-se a um ambiente crispado e diz-se mesmo que há condicionamento na liberdade de informar. Concorda?

Hoje não há serenidade para analisar o desempenho dos media enquanto tal. Ou se é pró-Sócrates ou anti-Sócrates, e em função disso desculpam-se todas as malfeitorias dos que são anti-Sócrates e elogia-se o que é feito contra o primeiro-ministro. E o inverso também é verdade. Isto é algo perverso. Enquanto investigador, acho este período fascinante. Enquanto cidadão, acho-o preocupante. Não tenho por hábito ser apocalíptico, mas estamos a viver um dos períodos mais negros da comunicação social.

Mas não creio que haja condicionamentos ou falta de liberdade. Se há, tem de se provar e é matéria para os tribunais.

 

É necessário educar para os meios de comunicação social no ensino?

É fundamental. É notável o trabalho dos provedores do ouvinte e do telespectador ou projectos como o “Público na escola”. Em Portugal somos todos treinadores de bancada quer do futebol quer dos meios de comunicação social. Toda a gente sabe como devia ser, que notícias deviam sair. Na verdade, sabem pouco. É preciso desconstruir os media, mostrar como as “máquinas” funcionam. Mostrar que a informação é feita por seres humanos, que há opções, selecção. A minha filha aos 8 ou 9 anos já sabia que sempre que o Marcelo Rebelo de Sousa começava com um grande elogio a alguém a seguir dava uma cacetada fortíssima. Por isso ela ficava sempre às espera do “mas” que introduzia a cacetada.

 

A leitura do seu livro leva o leitor a ser mais crítico para a informação televisiva. Já teve ecos deste efeito?

Sim. O maior elogio que me dão é dizerem-me que “isto é mesmo assim”. No fundo, estou a chamar a atenção para coisas que as pessoas vão percebendo. No livro fica um retrato exaustivo do que é o jornalismo televisivo. É preciso salvaguardar que o jornalista que dá a cara é o que menos culpa tem. As decisões passam muito pelos editores e directores de informação, que geralmente não aparece.

Por outro lado, escrevo para as pessoas e não para os meus pares. Não tenho o perfil do académico típico que foi professor aos 23 ou 24 anos. Nem sou como aquele jornalista brasileiro que chegava ao fim da escrita do artigo e dizia com orgulho: “Fixe! Deste ninguém vai perceber nada”. Escrevo a pensar nos meus alunos e nos cidadãos em geral.

 

 

“A informação ao serviço da estação” é o primeiro livro de uma série de três que antecede a publicação da tese de doutoramento sobre como se forma a agenda noticiosa das televisões. Os outros dois livros são “Em directo do inferno. Terceiro mundo em notícias” (já publicado) e “Da máquina enfatizada à máquina constrangida - Mal dita televisão” (em preparação).

 

 

Nota: Entrevista publicada no Correio do Vouga

Um dos jornalistas televisivos disse-lhe que tudo é infoentretenimento. É mesmo?

Ele tem a sua razão. Eles estão a animar aquilo que foi dado pela manhã. Notei duas rotinas automáticas dos editores quando chegam às redacções. Primeiro, vêem as audiências: “Demos porrada a…”; “o telejornal esteve bom, o que nos tramou foi…” Depois, consultam o clipping [recortes dos jornais da manhã] e decidem: “Uma equipa para isto, outra para aquilo”… Que conclusão tiro? Mais de um terço das notícias a que assistimos nos telejornais é informação requentada.

Por outro lado, temos principalmente uma televisão que se anuncia a si própria através de promoções. As “promo news” apareceram na agenda pública a quando da abertura de telejornais com o “Big Brother”. Mas eu mostro que a TVI não é a detentora do “pecado original”. Todas o fazem. A RTP sempre o fez, com o Festival da Canção, com a festa dos trabalhadores, ou a promoção de telenovelas como a “A Lenda da Garça”. O meu trabalho não se preocupa com a denúncia de grandes casos – como o tratamento da tragédia de Castelo de Paiva ou do assassínio de Fortaleza – mas com as coisas mais pequeninas que vão fazendo a nossa cabeça e das quais não nos damos conta.

 

O seu livro aparece com uma cinta que diz “Como eles nos enganam” e, além de promoções, fala também de silêncios e desvirtuações. Quer dar exemplos?

Há a contaminação das notícias pela pu-blicidade da própria estação, silenciam-se feitos das outras e desvirtua-se a informação. Quando a RTP perdeu os direitos de transmissão da Volta a Portugal em Bicicleta, apesar de estar salvaguardado o direito de transmitir uns minutos, não deu uma única notícia. Nem sequer o vencedor, no último dia. Estamos nos silêncios. São coisas condenáveis. Fala-se das derrapagens dos jornalistas em relação àquilo que se publica, mas o silêncio é terrível. É difícil perceber, porque ninguém está a ver os canais todos ao mesmo tempo. Mas acontece.

Ora, no ano seguinte, a Volta regressa à RTP. Então, a SIC dá muitas notícias da Volta. Podíamos pensar que se comportou melhor, que teve respeito pelos telespectadores, mas o que aconteceu foi que houve um escândalo de “dopping”. A SIC apareceu para dar o negativo. Estamos nas desvirtuações. Outro caso. Quando a TVI avançou com transmissão de touradas, a SIC não dava nada sobre o assunto. Mas um dia caíram umas pedras no Campo Pequeno. Feriram um turista. A TVI não deu nada. Devia ter dado. A SIC lá estava a fazer um directo. Outro exemplo. Em 1999, 15 ou 17 crianças fogem de um lar no norte do país. Andaram a monte até à noite. No dia seguinte, a RTP dizia que os jovens foram encontrados por uma equipa da RTP. Na SIC, dizia-se que foram encontrados pela GNR; na TVI, pela Judiciária. E qual foi a verdade? Na realidade, foi uma equipa da RTP com um repórter do Jornal de Notícias, que também foi omitido pela RTP. Tratou-se de esconder os feitos da concorrência.

 

As televisões continuam ainda hoje a fazer silêncios e desvirtuações? As práticas do período que estudou são extensíveis à actualidade?

É recorrente. Por honestidade científica, não posso dizer que isso acontece. Não analisei. Mas tenho impressões e até mais do que impressões. Noto que até pode acontecer mais devido há concentração dos grupos de comunicação social. Vemos muitos mimetismos entre o “Expresso” e a SIC. Ainda há dias, era manchete no “Expresso” a ida de procurador do caso Freeport a Inglaterra. A SIC Notícias citava o “Expresso”. Ora, logo de manhã, houve um desmentido da Procuradoria-Geral da República. A SIC não deu nada. Estaria a desmentir-se e a desmentir um jornal do grupo.

 

Olhando para os tempos actuais, assiste-se a um ambiente crispado e diz-se mesmo que há condicionamento na liberdade de informar. Concorda?

Hoje não há serenidade para analisar o desempenho dos media enquanto tal. Ou se é pró-Sócrates ou anti-Sócrates, e em função disso desculpam-se todas as malfeitorias dos que são anti-Sócrates e elogia-se o que é feito contra o primeiro-ministro. E o inverso também é verdade. Isto é algo perverso. Enquanto investigador, acho este período fascinante. Enquanto cidadão, acho-o preocupante. Não tenho por hábito ser apocalíptico, mas estamos a viver um dos períodos mais negros da comunicação social.

Mas não creio que haja condicionamentos ou falta de liberdade. Se há, tem de se provar e é matéria para os tribunais.

 

É necessário educar para os meios de comunicação social no ensino?

É fundamental. É notável o trabalho dos provedores do ouvinte e do telespectador ou projectos como o “Público na escola”. Em Portugal somos todos treinadores de bancada quer do futebol quer dos meios de comunicação social. Toda a gente sabe como devia ser, que notícias deviam sair. Na verdade, sabem pouco. É preciso desconstruir os media, mostrar como as “máquinas” funcionam. Mostrar que a informação é feita por seres humanos, que há opções, selecção. A minha filha aos 8 ou 9 anos já sabia que sempre que o Marcelo Rebelo de Sousa começava com um grande elogio a alguém a seguir dava uma cacetada fortíssima. Por isso ela ficava sempre às espera do “mas” que introduzia a cacetada.

 

A leitura do seu livro leva o leitor a ser mais crítico para a informação televisiva. Já teve ecos deste efeito?

Sim. O maior elogio que me dão é dizerem-me que “isto é mesmo assim”. No fundo, estou a chamar a atenção para coisas que as pessoas vão percebendo. No livro fica um retrato exaustivo do que é o jornalismo televisivo. É preciso salvaguardar que o jornalista que dá a cara é o que menos culpa tem. As decisões passam muito pelos editores e directores de informação, que geralmente não aparece.

Por outro lado, escrevo para as pessoas e não para os meus pares. Não tenho o perfil do académico típico que foi professor aos 23 ou 24 anos. Nem sou como aquele jornalista brasileiro que chegava ao fim da escrita do artigo e dizia com orgulho: “Fixe! Deste ninguém vai perceber nada”. Escrevo a pensar nos meus alunos e nos cidadãos em geral.

 

 

“A informação ao serviço da estação” é o primeiro livro de uma série de três que antecede a publicação da tese de doutoramento sobre como se forma a agenda noticiosa das televisões. Os outros dois livros são “Em directo do inferno. Terceiro mundo em notícias” (já publicado) e “Da máquina enfatizada à máquina constrangida - Mal dita televisão” (em preparação).

 


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